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Texto criado a partir do processo criativo do espetáculo de dança "FIM" do VÃO desenvolvido entre 2017 e 2018 e que fez parte do projeto "como viver só em bando"  aprovado pela Lei de Fomento à Dança para a cidade de São Paulo.

 

O texto é um gesto individual dentro de um processo coletivo de criação e pesquisa desenvolvido e co-dirigido junto das artistas Carolina Minozzi, Julia Viana, Juliana  Melhado e Patrícia Árabe.

 

Dramaturgia da escuridão:

um contexto para imaginar e co-dirigir em tempos de fins [2021] 

Entra o público. Estamos imóveis. Vivemos em um mundo iluminado demais. No início carregar a vitalidade elétrica do corpo. Depois, o fundo. O buraco. O escuro. Permanecer na solidão e em paz. Somos olhos luminosos que brilham sem ver. Clarão. De novo viramos muitas em cada uma. No toque que abre mundos. Sabemos onde estamos. Mesmo sem saber. Contágio. Alguém desaparece. Clarão maior. Uma nuvem pesada surge e se arrasta no chão. O céu está pesado faz tempo, mas é doce e sutil. Cada uma vive sua própria situação instalada. Um espaço para imergir e conspirar nas distâncias. Cor laranja seca e reta. Quimera. Uma em duas em mais. Não dá pra saber a forma do corpo completo. O corpo mesmo já nem é tão importante assim. Ser alguém sem nome. Ser alguém que vaga e que está protegida. Um relevo vira cume, cai e se revolta violentamente. Uma fumaça desfaz a imagem de alguém que só espera. Outra vez. E outra. Uma queda inesperada do teto. Uma luz menor que não cessa de nos fazer ver o pouco que ainda resta para ser visto. Saímos dali. Deixamos nossos fantasmas. Enquanto a fumaça branca escurece tudo e sufoca a todos. Clarão. Sejam bem vindos ao FIM. Um convite para viver nossa capacidade intrínseca de morrer diariamente. Afinal, o que aterroriza é a luz que cega.

 

O processo de criação da peça FIM do Grupo VÃO se desenvolveu a partir do nosso interesse em pesquisar como ativar a experiência de contágio e conexão tendo como enunciado disparador a coexistência entre “estar junto” e “estar só”.

 

Como habitar ao mesmo tempo a solidão e a coletividade?

 

Nos propomos como prática para “estar juntas e só ao mesmo tempo” situações para habitar uma mesma espacialidade tendo como restrição a ausência do sentido da visão. Estar juntas em uma solidão compartilhada. Estar juntas de olhos fechados como forma de habitar ao mesmo tempo a escuridão interna do corpo e um espaço cuja responsabilidade e prazer de sua construção é coletiva.

 

Quando fechamos os olhos, encontramos uma escuridão interna. Quando fechamos os olhos juntas compartilhamos nossas solidões. Com o tempo, o escuro se tornou prática, metodologia, linguagem e dramaturgia. 

 

O que pode um bando em meio a uma escuridão?

 

Percorrer um mesmo percurso de olhos fechados. Mover a partir da sensação de um corpo ausente pela visão, mas presente na distância. Fazer o mesmo movimento sem ver a outra. Pesquisar as distâncias que nos conectam. Embarcar juntas e silenciosamente em uma longuíssima viagem ficcional e solitária de olhos fechados. Reconhecer, conhecer, desconhecer e imaginar com o corpo da outra. O toque que enxerga. Sentir medo juntas. Treinar a habilidade de construir, vivenciar e transformar o escuro. Fazer brilhar o escuro no corpo e no espaço.     

 

Através da repetição de experiências de dançar juntas de olhos fechados, percebemos que a conexão entre nós acontecia, mesmo sem nos ver ou nos comunicar verbalmente. Algo bastante desconhecido emergia. A ausência da forma visual do corpo da outra nos fez mergulhar e reforçar a nossa capacidade de compor e imaginar juntas a partir de uma escuta dos vestígios da presença, dos detalhes, da delicadeza. A escuridão passou a ser vista como ativadora de uma percepção sensório-imaginativa compartilhada.

 

Com a curiosidade de especular mais sobre formas de relação estando com os olhos fechados mergulhamos no interesse pela imaginação. Fomos percebendo que dançar juntas com a ausência da visão não só amplia outros sentidos, mas ativa a possibilidade de praticar uma co-imaginação encarnada. Um corpo coletivo que habita a escuridão como imagem comum e condição de sociabilidade. Uma sociabilidade ao mesmo tempo frágil, desconhecida, sempre inacabada, mas sustentada pelo vínculo e por uma confiança em constante estado de vir a ser.

 

Passamos a encarar a conexão, assim como a imaginação, como fenômenos da ordem do imaterial e do sutil. Ir em direção a sutileza da experiência do escuro se tornou um caminho e uma aposta dramatúrgica. No momento em que decidimos criar e dançar a coreografia inteira “sem ver”, a escuridão e a imaginação se tornaram não só contexto de geração de vocabulário de movimento corporal como também de um pensamento de dramaturgia orientado pela construção de uma espacialidade e de uma temporalidade comum em que pudesse co-existir singularidade e diferença.

 

O que o escuro nos dá?

 

Como operação dramatúrgica nasce então a proposição do escuro ser também uma experiência a ser vivida com o público. Um espaço imersivo de escuridão ou de pouca coisa para ser vista com os olhos. Estar fora passa a ser estar dentro da mesma experiência, uma experiência pautada pela ausência da luz e da forma do corpo. Estar fora passa a ser fechar os olhos mesmo estando com eles abertos. Passa a ser ver sem enxergar. Uma aposta para cair no abismo do não-saber e praticar a composição pela incerteza, pela intuição e por uma profunda habilidade de escuta do que emerge da distância.

 

Em geral, nos processos de criação em artes performativas, o primeiro público, o primeiro “olhar de fora” acaba sendo alguém que está  “dentro”, na função de diretor(a), coreógrafo(a), dramaturgista ou qualquer outro “olhar de fora”. Olhar de fora no FIM foi inevitavelmente praticar juntas um modo de ver através da escuridão. A condição da escuridão se estendeu para os modos de fazer escolhas para o espetáculo e se tornou uma maneira de potencializar o nosso modo de dirigir. Ou seja, fazer brilhar o escuro no FIM foi, em certa medida, um modo de fazer brilhar a nossa direção coletiva.

 

Fomos percebendo aos poucos certas analogias entre a prática da direção coletiva e a experiência de mover e imaginar juntas no escuro. Criar e dirigir coletivamente, tal como estar junto no escuro ou com olhos fechados, é sobre embarcar radicalmente no campo do improvável e do imprevisível. É sobre traçar percursos com convicção mesmo sem de fato saber o destino. É sobre coletar pistas, deixar rastros, ativar e apurar a percepção e a confiança em quem está perto. É sobre escuta. 

 

Dirigir uma peça coreográfica coletivamente é escolher operar através de uma lógica na qual o "resultado" não pode ser esperado, previsto ou comparado com outros contextos que assumem direção de um único diretor, porém ela é tão singular quanto. Entendemos que, em nosso modo operativo de dirigir, o “espetáculo” se faz singular não porque possui um formato que corresponda a uma única escolha ou a um único desejo, mas porque se particulariza como uma criação autônoma dentro de um processo único de práticas de reinvenção de vínculos e lógicas de estar junto. O que é singular é o modo específico de estar junto. Passamos então a enxergar a escuridão e a direção caminhando juntas enquanto contexto, sentido, prática e discurso dramatúrgico.      

 

Sendo a direção coletiva uma extensão da experiência de convívio e do compartilhamento da vida, a escuridão nos convocou a enxergar modos de sociabilidade cuja conexão não seja suportada apenas pela dimensão do visível. Em uma sociedade pautada pela experiência da luz, da clareza e da razão, FIM propõe a escuridão não somente como lugar de experiência compartilhada, mas também como metáfora e convite para experimentar uma política das relações humanas cuja delicadeza sustente as diferenças que nos definem.

 

Em tempos de fins o chamado foi e ainda tem sido olhar para o como, o quê e quem resiste e permanece vivo - nos fazendo brilhar o que há de vulnerável e incerto, e, assim, abrindo os olhos para aquilo que brota da escassez e do colapso enquanto regeneração e reparação da vida

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