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BOWERTEXTO [2020]

 

Publicado em junho de 2020 no PEGADA, publicação independente lançada a propósito do ciclo de apresentações do PACAP 4 - Programa Avançado de Criação em Artes Performativas, do Forum Dança. Esta publicação conta com o contributo de todos os participantes da 4.ª edição do PACAP, coordenação de João dos Santos Martins e editorial de Rita Natálio. A publicação foi redigida em português de Portugal e do Brasil, inglês dos Estados Unidos da América, espanhol de Espanha, Cuba e Argentina, e francês de França.

 

Link para acessar  em https://issuu.com/forumdancalx/docs/pegada-pacap4-2020 )

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texto completo:

 

Parte I 

 

QOMUM começa com a composição de miudezas encontradas no quintal do hospital psiquiátrico que sedia o projeto. Uma coleção de pequenas folhas, galhos, flores murchas e pedras que foram coletadas no jardim, bastante conhecido por todo o grupo. Minúsculas coisinhas selecionadas de preferência no mesmo dia, ou em algum momento antes de dar a largada, ou ainda há instantes antes do início dessa ficção que aqui narro.  

 

No espaço vazio há uma cadeira e uma pequena mesa de superfície lisa. Em silêncio, entra um senhor caminhando a passos curtos. Cabisbaixo, senta-se frente à mesa. De uma pequena caixa retira os tais rastros de vida encontrados no quintal. Como em um jogo de tabuleiro, inicia uma partida sem adversário. Reposicionando fragmentos dessa natureza morta compõe sua pequena paisagem, sua maquete de mundo. 

 

Olhos trêmulos. Ao mesmo tempo que suspende o tempo com sua densidade visionária, este homem encara aqueles que o observam: o público. Ele fixa seus olhos, cristalizados nos espectadores. Olha como quem vê mais do que todos nós. Seduz em respiração curta e sutilmente ofegante. Pouco a pouco, fóssil por fóssil, o “senhor do tempo” instala a construção de um espaço-ninho, escolhe silenciosamente seus parâmetros de beleza, de aproximação entre as coisas. Parâmetros delicados de uma arquitetura visual inspirada por aquelas feitas por um bowerbird. Esse pássaro australiano caprichoso, seletivo e detalhista cuja habilidade de criar castelos coloridos para o acasalamento nutriu o olhar do grupo, incentivando a enxergar os materiais que já estão por perto e, assim, especular e imaginar uma relação menos funcional entre as coisas.  A ação individual do “senhor do tempo” refaz a memória de uma prática vivida em qoletivo: todos ao redor de uma mesa branca, agindo em espera, elegendo cada gesto. Bowerhumans que praticam o silêncio juntos. Primeiro no próprio espaço e depois em todo o platô, fazendo desse platô um lugar qomum capaz de confundir autoria e  anonimato. 

 

Depois de um tempo, mais duas pessoas cruzam o instante inicial. Como músicos itinerantes, portando cases com instrumentos sobre as costas, começam ao fundo uma outra construção. Baixo e bateria — em montagem explícita — vibram ruídos no silêncio. Coreografia necessária para aquilo que, pouco a pouco, entre um plugue e outro, entre uma afinação e outra, irá oferecer densidade e arritmia, sobrepondo sons ocasionais da montagem em si àquilo que já está acontecendo. 

 

Estou do lado de fora junto com todos os outros. Estamos espalhados na periferia. Observo o momento em que a caixinha com todas as miudezas finalmente é esvaziada e é deixada de lado. Aviso de um novo momento a seguir. Saímos de onde estamos trazendo às mãos objetos encontrados ao redor, coisas funcionais e em desuso, matérias que compõe cada espaço por onde passamos. De habituais cadeiras a cabos quebrados de vassoura em estado de abandono atrás de portas. Cada lugar tem sua tralha. Tralhas são espaços. E cada espaço tem função e norma que habita o interior dos objetos. Os objetos, mais ou menos utilizados, mobilizam histórias que, por contradição, são reescritas em sua imobilidade. Bowerplace: mover formas de vida supostamente inanimadas. 

 

Iniciamos o novo instante. Trazer. Acumular. Posicionar. Expôr tudo aquilo que está à vista mas ninguém vê. Ao mesmo tempo em que qualquer um pode sentar-se à mesa, no tabuleiro inicial, na maquete de mundo, e recompor o composto criado pela pessoa anterior. Os barulhos da bateria se desenvolvem. Agora o  baixo pulsa e começa uma melodia ainda descontínua. O espaço se enche de coisas. O espaço nunca esteve vazio, afinal. Depois de algum tempo, não há mais o que trazer. Baixo e bateria se encontram. Música. Beat qomum.  

 

O jogo agora é com aquilo que já está no terreno. Colocar coisas diferentes lado a lado. Mudar de posição. Tomar decisão. Alterar o ponto de vista. Zoom in. Zoom out. Criar caminhos entre as coisas. Construir juntos uma paisagem de natureza instável e dinâmica, mas ao mesmo tempo completa pelo seu sempre vir a ser. Nada dura no mesmo lugar por muito tempo. Confundir ordem e desordem. Organismo e partes. Tudo se move. Corpo que pega, segura, coloca, entrega para o outro. Que completa a ação do outro. Que observa mesmo sem ver. Que se torna por segundos imóvel também. Uma coreografia improvável que anima a relação entre coisas vivas. Coisas com pernas de madeira, pele de plástico, cabelos de espuma, unhas de acrílico, cabeça de tijolo. As coisas movem e são movidas. Corpos-coisas. Um grande ninho qoletivo de bowercoisas.  

 

Há cada vez menos espaço de silêncio. A vida que se agita. À beira de um excesso iminente, pego em minhas mãos um vaso de bonsai de jabuticabeira e inicio um cruzamento no terreno em contraste lento com toda a paisagem acelerada, que até então estava em progressiva e obsessiva atividade. Como em levitação entrego o bonsai para alguém, que o leva para fora. Um bonsai: réplica em miniatura da grande jabuticabeira plantada entre cimentos no mesmo quintal da casa-clínica. Presença constante há décadas. Amuleto vegetal que simboliza a necessidade de partilhar o saber minucioso de cuidar de si e do outro. Vitalidade. Tradição que importa.         

 

Uma interrupção brutal paralisa a todos. Ouve-se uma gravação sonora, uma voz off: 

 

— Parem! 

 

A partir de agora nosso agir é reação à tirania iminente. Qual o papel dos que conduzem a prática do grupo? Como fazer circular sentido e fantasias individuais? Para driblar a autocracia formulamos uma lista de comandos para serem proclamados desde fora. Um score qoletivo. Ordens que dizem o que se deve fazer intercaladas entre segundos de silêncio minuciosamente calculados: 

 

—  Escolha um lugar e vá até ele. 

— Ei, vocês dois, corram! 

— Todos suspendam alguém do chão. 

— Sussurrem algo para alguém. 

— Fechem os olhos. 

— Movam-se a partir deles. 

— Movam-se disfarçadamente. 

— Vejam gafanhotos em cabeças. 

 

Esses comandos foram criados como ressonância do contexto vivido dentro e fora do nosso quintal. Contexto de autoritarismo em ascensão. Neofascismo contemporâneo. Fatoficção jornalístico. Brasil 2019. Resíduos coloniais do Brasil imperial vivido por Qorpo Santo. Qorpo Santo, autor este que nos inspirou a fazer nossa lista de ordens enquanto verdades inventadas frente a tirania que marca presença em tantas histórias qoletivas. 

 

— Cada um vá até um lugar inóspito e fique aí. 

— Gritem sem som por um minuto. 

— Observe quem te vê. 

 

Nossa lista é uma resposta ao controle que emerge como reação aos processos de abertura do espírito, tendência desesperada aos condicionamentos normativos, aos diferentes tipos de contenção do surto, a busca permanente pela estabilidade medicamentosa. Resposta: Se é assim, seremos então todos “cagadores de regra”! Fazendo das ordens cumpridas diversão qoletiva. Playing in the ground. Expondo o score como transparente e frágil. Capturamos a operatividade autocrática para então desativar sua presença e atuação nos corpos vivos. “Obedecer rindo por dentro da sua cara”.

 

— Atormentem-se. 

— Desatormentem-se. 

— Façam uma sinfonia!

 

Silêncio estendido. Esgotaram-se os comandos. Então, simplesmente mudamos de lugar, de cômodo, de ponto de vista. Nos posicionamos para a sinfonia. Nosso tormento cantado. Agora, estamos todos organizados em duas rodas. Uma dentro e uma fora. A roda é uma força centrípeta. Respiramos. Existimos com olhos fechados. Pouco a pouco, como um pequeno golpe de ar, pululam vozes das bocas. Evocações quase inaudíveis. Uma imagem: bolinhas de ar que explodem pouco a pouco na água que ferve. Vibrar as cordas vocais em som de “ô”. Arranhar, mais uma vez, agora em conjunto, o silêncio. Reduzir a linguagem ao mínimo ar que sai da boca. 

 

Primeiro: pílulas de voz e de pausa. Escuta. Segundo: recompôr a palavra tor-men-to, em sílabas, em fragmentos. Separar letra da palavra, sentido do som, voz da fala. Declamar trecho de um poema ritmado, eco interno reduzido a uma única palavra: 

Tormento. 

Também tô. 

Tô bem tô. 

Tô. 

Terceiro momento: pulsar e repetir. Dizer o mesmo corpo de palavra até desenfeitiçar seu sentido. Uns no tempo outros no contratempo.

TÔ. 

TÔ. 

TÔ. 

 

Estamos em nossa potência ritual, desenfeitiçando o sentido vivido da palavra tormento, encarnando-o. Sentada com o grupo do contratempo, ouço e observo a agitação crescendo no meu corpo. Confio que a escuta é capaz de fazer transparecer o que emerge como força de mutação do grupo. Escutando, vamos progressivamente em direção ao ápice.

 

Na subida, o som eletrônico e melódico do baixo pouco a pouco arrasta as vozes para fora. Torna-se tsunami. Se sobrepõe. Nos emudece a voz. Levamos o pulso ao corpo. O pulso se externaliza. Transforma-se em matéria de movimento. Viramos onda. Viramos fluxo. O pulso vira impulso.  

 

Onda. Onda que espirra impulsos de desejo por entre as articulações. A pele do cotovelo cai verticalmente. O osso do crânio sacode para o teto. Os músculos da barriga se torcem para preparar uma volta sobre si mesmo. Pele, músculo e osso: camadas preenchidas de vontades. Articulações: espaços vazios, cheios de ar, em movimento corporal. Estamos em plena ebulição e o ar ao redor se esquenta. O movimento individual e grupal intui o fora, deseja a expulsão. Nossa atenção está em concentrar em sentido côncavo o grupo e em sentido convexo cada um. Magnetismo. Afeto vibrátil entre os corpos. A onda já é redemoinho.

 

Até que alguém se desgarra, escapa pela vertente, invade o fora, atravessa em linha e desaparece. Um a um segue essa mesma fissura criada. Saímos em cortejo, essa versão em linha da roda. O que resta é o esvaziamento. O ruído que fica nos ouvidos quando se deita na cama após uma noite de festa. 

 

Três de nós reaparecem para realizar um convite: um pronunciamento. Uma mulher e dois acompanhantes vestem trajes imperiais e organizam um pequeno palanque. Todos os convidados se sentam. Nada acontece. A mulher está prestes a anunciar uma das premissas principais do QOMUM: o sentido de comunidade é algo a ser sempre inventado. Há uma pilha de livros em algum lugar. Ela está pronta para começar.

 

E diz: “— Dez leis para serem quem sou”. Começa então uma lista obsoleta de aforismos criados pelo grupo. Uma série de confissões ficcionais que ganham status de lei universal. Verdades que se camuflam em um social inventado por nós. A mulher, ao microfone, continua: 

 

— 1. Usar meias brancas lisas. 

— 2. Ser amoroso e odioso ao mesmo tempo. 

— 4. Tentar manter-se em forma. 

— 8. Não roncar. 

— 4. Gostar de andar. 

— 5. Ter fantasias sexuais e amorosas constantemente, no dia a dia, sem que os outros percebam. 

— 8. Servir só para si mesmo. 

— 10. Se perder no esconderijo. 

— 9. Procurar abrigo e aconchego. 

— 1. Gostar de comer comida de criança. 

— 4. Ter idéias e não realizá-las. 

— 2. Ser bloqueado. 

— 1. Gostar de comer bacalhau. 

— 5. Querer ser rico. 

— 9. Morrer cedo também. 

— 3. Ocupar-se de muitas tarefas ao mesmo tempo. 

— 10. Não ter paciência, ser paciente.

 

Disrupção. A bateria em repulsão produz uma cacofonia ensurdecedora. Nós, bowerhumancoisas, que estávamos ali camuflados na paisagem contemplativa, levantamos de sopetão. Reunimos rapidamente todos os corpos presentes em um único amontoado escultórico, formando uma espécie de templo vertical. Quando se encerra a construção, alguém se desgarra do templo e, olhando de frente o totem fajuto, grita em voz alta algo sobre palavras e mentiras. Nós, os outros, permanecemos parados,  dançando com os olhos em segredo. 

 

Em clima de pósfacio, como uma corrente de construção civil, começamos a passar de mão em mão cada uma das coisas trazidas, esvaziando o espaço. Enquanto isso, uma menina se levanta. Caminha devagar, observando o que acontece. Senta-se inclinada na mesma mesinha de superfície lisa e, com mãos delicadas, move sua versão de maquete de mundo, seu jogo solitário de tabuleiro. Retira do bolso pequenos papéis com as palavras: sou não vida eu morte sou eu. Com serenidade recompõe essas palavras de diversas maneiras até, por fim, construir a frase: “eu sou vida eu não sou morte”. Se levanta e vai embora.   

 

Parte II 

 

O texto na parte I é uma reescrita do nosso QOMUM. Uma tradução de um roteiro performativo em um relato que flerta com o ficcional, que se interessa em desviar da ordem objetivista da linguagem para oferecer a ela um contorno ao mesmo tempo pessoal e exterior a mim. Uma escrita que narra, ao mesmo tempo que lembra, que inventa, que se afasta e chega tão perto que se perde, mas que, com o tempo, se levanta e se deseja sim comunicar. Uma escrita que para fazê-la foi preciso começar do fim, foi preciso dar uma volta sobre si mesma para então, em loop, retomar por praticar a própria escrita em sua potência como ação feiticeira, de cura e de invenção de qomuns. 

 

QOMUM é e foi isso - um ato performativo criado em 2019 depois de seis meses de imersão na prática artístico-clínica desenvolvida pelo Grupo Aberto de Teatro e Clínica do Instituto A Casa, uma instituição de tratamento psiquiátrico sediada na cidade de São Paulo, precursora da luta antimanicomial no Brasil dos anos 80. No dia a dia do projeto desenvolvido era lei: se está mal, delirante, depressivo, ausente é justamente no QOMUM o lugar onde faz sentido estar. Criamos naquele ano um espaço possível para sucumbir em conjunto. 

 

O grupo é aberto, heterogêneo, instável e existe há mais de 15 anos. Faço parte da equipe de coordenação há 5 anos, sendo móveis e em permanente revisão as responsabilidades de sustentação clínica e direção artística do projeto. 

Tomando por ponto de partida a vida e os escritos de Qorpo Santo e, em diálogo com outros três artistas convidados intrigados na co-existência entre artes performativas e clínica das loucuras, damos o nosso pontapé a essa criação. 

 

Qorpo Santo foi um dramaturgo, poeta, jornalista e tipógrafo brasileiro que viveu de 1829 a 1883 tendo nascido no Rio Grande do Sul e vivido grande parte de sua vida em Porto Alegre, região sul do Brasil. Com nome de nascimento José Joaquim de Campo Leão é conhecido por ter sido o precursor do “teatro do absurdo” ou “surrealista” mesmo antes dessa vanguarda se constituir como movimento artístico na Europa. Autor de Ensiqlopèdia ou seis mezes de huma enfermidade foi diagnosticado pelos protocolos psiquiátricos da época como monomaníaco. Como membro da elite sulista oitocentista, encarnou em sua escrita o paradoxo de ser ao mesmo tempo libertário de sua insensatez e um homem moralista e conservador. Sua Ensiqlopèdia foi construída no período em que esteve internado, foi impressa em sua própria tipografia, ficou parada nas estantes por mais de cem anos desprezada por ser considerada documento de uma insensatez pessoal para só ser reativada em um primeiro momento pela crítica ao movimento modernista no Brasil e, depois, a partir dos anos 60 quando Qorpo Santo passou a ser compreendido como um autor fora de seu tempo. Com uma escrita multifacetada, desde comédias teatrais incompletas, desconexas e muitas vezes incompreensíveis a poemas ordinários, aforismos, listas de leis ortográficas, matérias de jornais, cartas endereçadas a juízes, doutores, jornalistas, ler Qorpo Santo é, muitas vezes, se perder em um vazio de sentido, é perder-se diante de uma escrita carregada de justaposições, saltos, múltiplos temas em uma velocidade escorregadia. Seus escritos, em que o próprio assume, em diferentes momentos, não ter o hábito de ler após escrever, dão a sensação de serem crus e inacabados, expressando, na maioria das vezes, aspectos de uma biografia ficcional contorcida sob os limites da (in)comunicabilidade do pensamento lógico e racional.

 

Escrever compulsivamente histórias, poemas, personagens, verdades e inutilidades como cacos de um corpo ficcional ao mesmo tempo individual e coletivo foi umas das primeiras provocações que o contato com a obra de Qorpo Santo nos impulsionou a fazer a nossa. QOMUM começou então a ser criada como uma composição de experiências ficcionais individuais e autorreferenciadas a fim de se tornarem parte de uma mesma situação coletiva. Em um desafio que beira à vertigem, começamos por evocar nossa capacidade de invenção de “si”, criando e refazendo breves narrativas simbólicas, identidades fabulosas; vestindo e modelando máscaras feitas como recortes da multiplicidade que nos habita, contando biografias inventadas, movendo gestos, vozes do outro, outros de si. 

 

Fomos encontrando alguns princípios ético-artístico-clínicos específicos ao projeto e construindo pouco a pouco uma estética terapêutica situada. Dentre eles: ajustar a palavra ao gesto para dar forma à pulsão de vida e de morte; confiar na transparência do método como um pacto de sustentação e erupção da força criativa do grupo; ler a “cena” em sua dimensão indissociável da “vida”, empoderando-se do contorno ficcional como ferramenta de saúde e criação; nomear nossa prática performativa como uma moldura ficcional, lugar para habitar uma dimensão não binária do cuidado e da criação, fazendo co-existir processos de cura e loucura. 

 

O trabalho se deu em pulso ritual com encontros fiéis às quartas-feiras. Texto e corpo emaranhados em um cortejo de seis meses, resultando em três aberturas públicas de processo e cinco apresentações em outras instituições de tratamento psiquiátrico e em diferentes espaços culturais da cidade. 

 

Percebo que a contorção que se fez necessária nesse projeto foi encontrar formas de materializar a nossa desconfiança a modelos padronizantes das subjetividades humanas, procurando burlar leituras cristalizadas que persistem em distinguir a normalidade da insensatez como uma escala mensurável de valor em relação ao grau de verdade. Ou seja, foi preciso nos manter em pergunta sobre como encontrar em uma prática artístico-clínica espaço para desconfiar de modelos binários de pensamentos que não somente opõem mas qualificam real e ficcional, fantasia e consciência, invenção e fato, normal e incomum, como atributos de uma sociabilidade sadia ou não. 

 

A fim de reencarnar esse universo em escrita tratei de tocar em leituras que pudessem me acompanhar no processo de olhar de novo e ampliar a experiência vivida em QOMUM.  Dessas vozes companheiras, escuto ecos do antropólogo brasileiro Renato Sztutman em seu ensaio  Reativar a feitiçaria e outras receitas de resistência onde toma por base a ideia de reclaim proposta por Isabelle Stengers. Stutzman dialoga com a noção de reclaim como uma ação-conceito que pode ser associada a ideais de reapropriação, reconquista ou retomada, e cujo enfoque de Stengers está ligado a práticas de fazer-pensar sobre a urgência da reativação de habilidades marginalizadas pelo mundo moderno-capitalista, tais como a magia e a feitiçaria. Práticas julgadas como irracionais ou “charlatonas” e passíveis de descrédito e eliminação de seus agentes.

 

A urgência de retomar tais práticas não são, segundo a própria Stengers em Reativar o Animismo, apenas uma preocupação discursiva ou sobre estruturas de pensamento, mas sim preocupações fundamentalmente de ordem ética e política cuja experiência comunitária é aquilo que realmente importa ser recuperada. Em suas palavras, “reativar significa recuperar e, neste caso, recuperar a capacidade de honrar a experiência, toda experiência que nos importa, não como “nossa”, mas sim como experiência que nos “anima”, que nos faz testemunhar o que não somos nós”. Ou seja, reclaim como forma de resistência e recuperação de um sentido “comum” de viver, o que ressoa como uma finalidade ao mesmo tempo política e terapêutica. 

 

Resistir em QOMUM, em ressonância com Stengers, significou criar espaços de convívio e de criação de ficções possíveis e improváveis, encarando nossa prática como ação continuada de desenfeitiçar o binarismo razão versus desrazão que a tradição ocidental moderna tanto se interessa por manter intacta. Resistir porque confiamos que ao criar juntos outros de si nos abrimos à possibilidade de anestesiar, mesmo que temporariamente, a captura capitalística das insanidades, cujo principal artifício é suprir as forças vitais de invenção, sensibilidade e comunicação entre realidades para colocar em seu lugar o estigma de uma sociabilidade normativa. Resistimos quando falamos da alquimia na invenção de si enquanto atividade plástica que, a depender do ângulo que se vê, pode ser considerada tanto cuidado terapêutico quanto poesia. Resistimos quando reforçamos que a loucura não existe em si, que a ficção pode ser “remédio” e “veneno” ao mesmo tempo e que comum é a nossa capacidade de animar a experiência de inventar e cuidar junto.

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