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Este texto foi criado durante um período de residência artística em dança e escrita realizado no Ateliê Real em Lisboa em 2014 como parte da pesquisa de mestrado desenvolvida na UNICAMP (Universidade Estadual de Campinas/SP) com orientação da atriz e pesquisadora Ana Cristina Colla . A pesquisa de mestrado teve como foco desenvolver um estudo teórico-prático a partir da intersecção entre Mímesis Corpórea (Lume Teatro) e a minha experiência pessoal com a dança.
Esse processo culminou em uma dissertação cuja escrita esteve atravessada pelas práticas e metodologias de criação, tendo gerado um experimento performativo intitulado "autorretrato em movimento", apresentado no evento Blind Date no Ateliê Real em Lisboa.
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o corpo escreve [2014]
(prólogo da dissertação)
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"Disserto disfarçadamente. Discorrimento. De certo, faço dessa matéria de palavras uma pausa, que virou outra coisa, que nasceu do vivido. Discreta. Certamente discorro sobre dança, sobre corpo e criação, mas também sobre mim (esse outro), sobre a vida e sobre uma memória que virou presente agora, enquanto escrevo e, agora, de novo, enquanto se lê. Descarto as respostas. Desisto quase que diariamente. Descrevo movimentos, experiências e tentativas. Do certo e do errado. Descanso das formalizações. Desperto desejos, em mim, ao menos. Descarada que sou. Desminto depois de mentir. Nem sempre.
Escrever é como falar da experiência de viver, tal como foi, e ainda é, no exato momento em que se escreve. Transformar a vida em matéria de verbo e....
Antes mesmo do pensamento pensar,essa linha retareta e vermelha
corredesesperadamente
para alcançar o seu destino: de ecoar o pensamento.
Fazer dele uma mera brisa inofensiva,
carinhosa comigo.
Coisa que normalmente não é.
Sendo ele,o pensamento,
cruel com a gente
quase sempre,
quando acha que é corpo,
mas não passa de vento.
Tento encontrar essa escrita que se deleita com o fluxo de um rio. Tem horas em que ela mesma se atropela, cria correnteza onde mal se vê o fundo. A terra lá em baixo. Outras vezes tromba de margem em margem, desgovernada, indecisa sobre o prumo certo. Procuro palavras que me fluam, que se conectem com o estado da dança do silêncio. Procuro pelas palavras com a mente ventilada, normalmente é daí que elas surgem concretas e se deslizam. Caso contrário, serão artificialidades injetadas de intenções mundanas, serão vontades de uma parte minha que não vale muito a pena. Escrever me traz para cá, me faz conversar com você, que sou eu aí. Me faz gostar mais de mim, que é você disfarçado de leitor.​
O que poderia acontecer se eu me sentasse em frente a essa tela e resolvesse escrever algo que ainda não sei o que é? Se eu apenas deixasse esse estado de domingo chuvoso, único dia de silêncio brando na cidade, me atravessar como um impulso do corpo e deixasse de ser estado para virar palavra. Palavras aparentemente tolas que não servem para nada, ao menos para trazer alívio e chamá-las de desejo escrito. Então, me deleito com esses dias que chegam para ficar comigo e eu estou para ficar com eles. Companheira do tempo. Um momento como esse serve sim para alguma coisa: serve para vivê-lo em segredo - agora - revelado: desejo de dançar, ir ao encontro do silêncio ensurdecedor, continuar, assumir a fragilidade, emancipar e criar outros em mim (transformando-me)! Um desejo de criação, de reflexão - para resistir ao sufocamento do afeto e do prazer, ao que enrijece, ao que inibe, ao que me consome e me apodrece o espírito."​