O texto "SubAtlantic Abyss" foi originalmente publicado em inglês e português na revista South BoomBoom, projeto editorial de Flavia Pinheiro e Mario Lopes que inclui textos, ensaios e poemas de artistas convidados, incluindo Ana Lira, Rodrigo Batista, Paula Montecinos Oliva, Isis Andreatta e Carolina Bianchi.
Os textos da revista também foram publicados numa secção especial do Performance Philosophy Journal Vol. 7 No. 2 (2022) com contributos de estudantes não-europeus da Economische Ruimte (EER).
A publicação foi possível graças ao apoio de Laura Cull Ó Maoilearca e ao financiamento da DAS Research, da Academy of Theatre & Dance, Amesterdão, e dos acordos de qualidade Medezeggenschap, Participation Council of the ATD e Platform 2025.
Acesse aqui o conteúdo completo do Performance Philosophy Journal Vol. 7 No. 2
Acesse aqui conteúdo completo da South BoomBoom
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Um excerto de "Sub Atlantic Abyss" foi também publicado no ARIAS, uma plataforma de investigação para as artes e as ciências em Amsterdam.
O excerto foi lançado no âmbito do programa Climate Imaginaries at Sea no qual foi impresso um zine que reúne projetos relacionados com e a partir de poéticas e política no nível do mar.
ABISMO SUB-ATLÂNTICO
Esta escrita é um devaneio sobre habitar o abismo da vida sub-atlântica. Um esboço de uma narrativa especulativa sobre como subverter margens físicas e metafísicas. Mergulhando. Um ato confiante na estratégia de que delirar entre as bordas é uma forma de existir para além dos estigmas da Terra Firme.
Trata-se de mais uma estória sem fim. Sem herói. Sem conflito. Um fragmento, uma semente, um grão de areia. Tal como milhares de estórias cotidianamente inventadas por debaixo dos destroços e da violência das águas que afogam vidas quando estas tentam corajosamente boiar ou nadar para além das superfícies e das fronteiras que lhes foram impostas.
Aos que estão seguros em suas embarcações ou obstinados por chegar enfim à terra continental, nada parece estar acontecendo. São incapazes de escutar o falatório subaquático. Insistem em usar armas de pesca e tecnologias de controle das marés. Possuem inúmeras ferramentas de expropriação das águas, mas mal sabem nadar.
Já para os que não têm a opção de boiar, o melhor a fazer é puxar uma boa dose de ar e - com os pulmões cheios - mergulhar no abismo das águas oceânicas.
Aos seres apartados da margem, portanto, o abismo é experiência comum. Seja pelos diagnósticos psiquiátricos, seja por definições normativas de gênero, por subjugação de raça, por qualificações capacitistas e/ou por condições sócio-geo-econômicas de classe apropriar-se das habilidades da vida subaquática é um gesto não só de resistência, mas de retomada do sentido comum de delirar a vida para além do paradigma da Terra Firme.
Em subversão à racionalidade compulsória e aos deslocamentos forçados de vidas de uma superfície plana a outra, o abismo oceânico é, então, habitat para uma infinidade de seres dissidentes da norma. Dessa multidão, corpos estigmatizados tanto pela desrazão como pela outridade inventada e praticada por aqueles que pairam seguros sob a superfície (ou assentam seus pés sob a firmeza da terra) encontram na vida sub-atlântica um lugar possível para existir e estabelecer elos de aliança.
Entre as experiências das loucuras, por exemplo, o oceano se revela como um lugar por onde uma super-vida emerge. Uma transcendência ficcional que brota para além das narrativas lineares, vitoriosas, nítidas e evidentes que constituem a imaginação colonial e sua perspectiva violenta de vida social.
No interior dos oceanos, a verticalidade do corpo ereto se desfigura. Se horizontaliza. Comunidades inteiras submersas cantam os cantos das baleias. Linguagem aquosa, que se espalha em ondas lentas e toca a pele de todos que nos entre-mares habitam.
Embaixo das águas, é possível perder verdadeiramente a sensação de peso. A realidade concreta do corpo se torna ilusão enquanto os ouvidos se tapam a cada centímetro em direção ao fundo.
Respiro 1: Para viver no abismo sub-atlântico há vozes que não se deve ouvir.
Com tempo, prática e sabedoria a pressão diminui. O universalismo de um único idioma é pouco provável que vingue, pois as águas mudam a todo tempo de temperatura e o ambiente nunca permanece estável por muito tempo. Uma vez submerso, o silêncio ensurdecedor inicial aos poucos abre espaço dentro das têmporas, que por sua vez se tornam conchas acústicas capazes de escutar sons de outros tempos.
No abismo sub-atlântico é possível também abrir os olhos e deixar arder as córneas oculares até que seja possível enxergar um borrão nebuloso. Uma paisagem embaçada. Nessa paisagem indefinida habitam outras criaturas marítimas. Todas sem forma legível. Seres de tamanhos e cores diversas. São milhares de tipos de vidas que foram lançadas ou lançaram-se voluntariamente no abismo cuja criação é estratégia daqueles que se consideram seguros o suficiente para dividir um lado do outro. Que separam, nomeiam, distinguem, comparam, definem, qualificam o que é terra firme, o que é margem e o que é oceano.
Portanto, aos habitantes sub-atlânticos cabe desde o fundo preservar os mistérios da vida-sem-borda a fim de gozar outro tipo de força gravitacional que constitui o mergulho da experiência de dissidência. A magia é, portanto, saber que o abismo é, em si, pura inseparabilidade. E que é nele por onde se diluem por completo as divisórias que foram impregnadas aos seres subaquáticos, vindos de oceanos vários, que compartilham - sempre com muita coragem, luta e sequela - a experiência de atravessar fronteiras e perceber que não há mais nem destino nem partida. Que há apenas as águas e a linha hemisférica em si.
Respiro 2: Viver o abismo é quando a tenacidade da linha acaba por se tornar a própria morada.
Para quem vive submerso, a superfície é apenas passagem. Ou tampouco existe. Seja para dar saltos ou conferir o brilho da luz do sol, já se sabe que tentar nadar na superfície é muito mais exaustivo do que a apnéia do mergulho. Apesar da superfície parecer plana, sua solidez é irreal.
Respiro 3: Quem vive submerso no abismo sabe que não se pisa em águas profundas sem se afundar.
Uma vez embaixo, o deslocamento é condição de existência. Não existe a possibilidade de parar. Mesmo em pausa, a força das marés não cessa de mover os corpos. A natureza dinâmica dos redemoinhos é, justamente, o meio pelo qual se encontra o alimento. Os oceanos parecem ser sempre os mesmos, mas as suas águas profundas não cessam de se mover e se transformar.
Saber o percurso não é o que mais importa. Não há uma direção precisa a seguir. Dentro do interior das fronteiras não há sentido retilíneo. O tempo é definitivamente multidirecional, denso e irregular. O percurso de ir é, na realidade, a constante prática de fabular guelras para si, já que no abismo o oxigênio é absorvido por órgãos inventados e adaptados para viver na escassez e vulnerabilidade sistêmica.
Respiro 4: Respirar embaixo das águas é uma das tecnologias adquiridas pelas ancestralidades subaquáticas.
Abaixo e além do paradigma continental - onde para muitos não é possível nadar - as palavras escapam em desordem e se misturam com as vozes de outros seres. Em cacofonia formam linguagens e anatomias ininteligíveis, porém capazes de narrar e especular com exatidão a experiência encarnada de não estar nem lá nem cá. Linguagens que são como fragmentos do enorme e complexo exoesqueleto de corais multicoloridos por onde habitam, camuflam e deliram as vidas subaquáticas.
Respiro 5: Delirar é gesto de recusa deliberada da borda colonial.
Portanto, compartilhar o delírio que constitui a paisagem do fundo do mar faz dos seres sub-atlânticos habilidosos o suficiente para, sempre que for preciso, produzir com os seus movimentos e vozes ondas gigantes que atravessam quilômetros e, cujo efeito é - mesmo que passageiro - provar aos habitantes da Terra Firme o quão frágil, instável e imperfeita é a borda.
Respiro último: O movimento dos seres viventes no abismo sub-atlântico é também chamado de maremoto decolonial.
Esta foi uma prática de traçar linhas de encontro entre movimento e escrita. Um experimento em processo. Um exercício de depor a partir de um corpo nu que se move sem fim. Que aprende a nadar a cada mergulho. Que tem interesse em especular a travessia da borda ao mar. Do mar à borda. Trata-se de um desdobramento de uma coreografia pessoal que tenho chamado de “Verde Abismo”, em desenvolvimento na DAS Choreography, em Amsterdam. Mais um elemento a ser colocado na bolsa verde, cujo interior contém outros pequenos objetos que estão sendo encontrados em travessia.]
inspirações:
GUMBS, Alexis Pauline - “M Archive: After the end of the word” - Duke University Press, 2018.
LE GUIN, Ursula K. - “A teoria da bolsa de ficção” - 1. ed. - São Paulo: n-1 edições, 2021.
MOMBAÇA, Jota - “Não vão nos matar agora” - 1. ed. - Rio de Janeiro: Cobogó, 2021
PI, Ana e Novo, Maria F. - podcast: “RÁDIO CONCHA: dança e filosofia” - https://www.youtube.com/channel/UCfvZGbxPAZA8JLcmC-nYBJQ